Tenho saudades de te ler.
Tenho saudades de te levar na mala, desse lá por onde desse, porque sempre tive o condão de as usar a abarrotar, pesadas, até não caber lá dentro um isqueiro sequer. Mas tu lá ias sempre, com um dos lados a espreitar a rua que era quase sempre feita de um caminho estreito ladeado de redes esburacadas.
Tenho saudades de te ler e se não estou errada não o faço desde as manhãs nebulosas a cheirarem a biblioteca em que te pousava no meu colo na carruagem baforenta em que todos os dias um homem entrava a cheirar a after shave misturado com o último Gigante que fumara antes de entrar no comboio. E então pousava-te no meu colo e entrava nesse teu mundinho de coisinhas, em que cada palavra tem o seu sentidozinho, em frases alinhadas, sem erros nem gralhas.
Mas também fingi muitas vezes. Qual é a mulher que não finge? De olhos postos em ti, fingi muitas vezes que andava ali a entender o que me escrevias, mas os meus olhos estavam apenas postos em ti, como se olha para uma fatia de tarte por detrás de uma vidraça sem lhe tocarmos. Os meus olhos muitas vezes iam parar aos ouvidos e deixava-te ali no teu mundinho de coisinhas para me entreter com as conversas mundanas que duas velhas velhinhas iam a ter no banco da frente. Falavam tão rápido quanto o Cacém, a Amadora e o apeadeiro de Sete Rios varriam as janelas sujas. Eu perdia-me por ali e só voltava a ler-te quando bem me apetecesse. Não mandavas em mim. Ah, mas quando voltava a ler-te. Que delícia, quando voltava a ti. A abrires-me novas portas, a romanceares a minha vida agitada... e a dares-me sono. Não me leves a mal, mas era verdade. Mutas vezes deste-me sono e dava por mim a comer-te as linhas e os ponto e vírgulas e tudo o que me pusesses à frente com as tuas coisinhas. A precocidade do dia e o embalo dos carris faziam-me adormecer pelo caminho, com o cotovelo a magoar-se naquelas janels que não foram feitas para dormirtar e com a mão encostada ao queixo. Fiel companheiro, lá te fazias cair do meu colo às páginas tantas, como que a salvar-me de uma frequência falhada ou de mais uma falta à primeira cadeira da manhã. E quase sempre era tarde demais. Lembras-te? Lá iamos depois num corropio, tu a tentares agarrar-te por baixo do meu braço, amarrotado mas nunca esquecido, e eu a tentar arrastar o meu rabo e aquela mala, ui, sempre tão pesadas e a abarrotar. O caminho inverso já se fazia sem magia, era antes um sobressalto onde a única missão era estabilizar o ritmo cardíaco e as emoções de mais um dia começar no sentido contrário. Tu ainda esquecido na minha axila, enquanto guardo o passe no único recanto ainda livre da minha mala.
E já só nos voltávamos a reencontrar ao final do dia, com o bafo saturado, a fazermos as pazes. Eu a pedir-te desculpa, a prometer-te que velha alguma me iria roubar de ti pela manhã. Mas caramba, aquelas velhas velhinhas eram mesmo boas.
Tenho saudades de te ler.
2 comentários:
Gosto de te ler!
escreves muito bem...já te disse.
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